“A mão e a luva”: Judeus Marroquinos em Israel e na Amazônia; similaridades e diferenças na construção das identidades étnicas.

Por: Wagner Bentes

Trata-se de um projeto realizado após de cinco anos de pesquisa, mas que se iniciou muito antes, no ano de 1999 com o trabalho de conclusão do curso de antropologia pela Universidade Federal do Pará, intitulado: “Um olhar sobre a sinagoga Eshel Abraham em Belém do Pará.” que posteriormente serviu de embasamento para o projeto de mestrado realizado através do Programa de Língua Hebraica Cultura e Literatura Judaicas da Universidade de São Paulo – USP.

A dissertação de mestrado “Estrela minguante: memória e ressignificação do judaísmo no interior do Estado do Pará” abordou os resquícios e memórias da presença judaica na cidade de Cametá na região do Rio Tocantins, que no passado abrigou uma considerável comunidade judaica, e também nas cidades de Santarém, Obidos e Alenquer, na busca de um entendimento do judaísmo e de seus resquícios nas extintas comunidades judaicas da região do médio Amazonas.

Geralmente as pesquisas empreendeidas sobre os judeus na região amazônica enfatizam como os judeus chegaram à região, as razões que impulsionaram este processo de imigração, ou como os judeus se adaptaram a vida nos trópicos. Já o projeto de pesquisa “A mão e a luva: judeus marroquinos em Israel e na Amazônia; similaridades e diferenças na construção das identidades étnicas” realizado entre os anos de 2006 e 2010 também pelo Programa de Língua Hebraica da USP buscou alcançar uma visão contemporânea sobre os judeus marroquinos após dois séculos na região amazônica. Quais as características atuais do judaísmo marroquino/sefaradita cultivado durante dois séculos na Amazônia, e como se configura atualmente este judaísmo após tantos anos de inserção junto a sociedade local, e mediante outras influências, inclusive de outras correntes internas do judaísmo.

No entanto, o projeto “a mão e a luva” buscou ir além, mais do que uma análise contemporânea do judaísmo na região Amazônica, ou uma continuação da pesquisa anterior que estudou o judaísmo nas cidades interioranas. Além de contemplar o judaísmo em Belém e Manaus, as principais capitais da região norte do Brasil, o projeto a “mão e a luva” recebeu este nome parafraseando o título do romance do escritor Machado de Assis, pois se propôs a comparar os traços do judaísmo marroquino conservados nas comunidades da Amazônia, com os traços do judaísmo marroquino conservados na sociedade israelense.

A ideia de comparar as comunidades de judeus marroquinos na Amazônia com as comunidades dos judeus marroquinos em Israel surgiu inicialmente a partir da percepção da oposição existente entre os dois grupos.

Os judeus marroquinos ao imigrarem para a Amazônia não eram considerados o modelo ideal de imigrante, pois não eram considerados brancos, não eram cristãos, e não eram rurais, logo não aptos para empreender os planos de embranquecimento do Brasil. Mas na região amazônica os judeus apesar do estigma de não-cristão eram vistos pela população local como brancos mediante as populações indígenas e mestiça predominante na região. Em menos de meio século de inserção na Amazônia, muitos judeus já se colocavam na elite local como comerciantes, educadores, políticos e militares.

Já a inserção dos judeus marroquinos na sociedade israelense foi um processo árduo e espinhoso, desencadeado com a expulsão no ano de 1950 de quase 300.000 judeus tanto da costa do Marrocos, como de comunidades judaicas instauradas há muitos séculos nas montanhas Atlas, por conta de retaliações dos Países árabes contra a criação do Estado de Israel em 1948. Durante muito tempo estes judeus foram vistos por muitos setores da sociedade israelense branca e sionista, como negros, iletrados e primitivos. Com o passar do tempo os judeus marroquinos foram galgando lugares mais altos na sociedade israelense, e vencendo os estigmas a eles atribuídos.

No entanto, este processo imigratório descrito aqui muito resumidamente, aponta para a oposição existente entre a identidade dos judeus marroquinos na Amazônia, e a identidade dos judeus marroquinos em Israel. A descoberta desta oposição entre estas duas identidades judaicas foi o que me impulsionou a fazer este trabalho comparativo.

Para realizar esta pesquisa comparativa fiquei um ano em Israel na condição de pesquisador visitante da Universidade Hebraica de Jerusalém. Além da orientação de outros antropólogos que há muito se dedicam ao assunto, e de coletar vasta bibliografia sobre o judaísmo marroquino, estive pesquisando em vários eventos relacionados ao judaísmo marroquino em diversas localidades do Estado de Israel.

Um número muito grande de aspectos do judaísmo marroquino foi coletado, não só nas pesquisas realizadas em Israel entre os anos de 2004 e 2005, como também nas pesquisas realizadas em Belém (2007) e Manaus (2008). Foram analisadas a culinária, a arquitetura, a liturgia, o misticismo, rituais de nascimento, matrimoniais e funerários, além de alguns festivais folclóricos marroquinos em Israel.

Mediante a riqueza e diversidade dos elementos do judaísmo marroquino selecionados, por motivos metodológicos, somente cinco foram analisados mais aprofundadamente nesta pesquisa.

Foram eles: O ritual de Mimuna, a devoção aos Tzadickim, o sacrifício das kaparot, a Haquitia, e o ultimo elemento analisado foram as celebrações matrimonias da henna. A seguir explicaremos os motivos da escolha e como cada um destes elementos serve como demarcadores das identidades judaico-marroquinas tanto em Israel, como também na Amazônia.

O primeiro elemento a ser analisado foram os festejos de Mimuna, ou Mimona como pronunciado nas comunidades judaicas da Amazônia. A festa da fartura e da sorte, que celebra a volta do trigo para os lares judaicos após o período pascal, é emblemática e significativa para ambos os grupos judaicos pesquisados.

Foram analisadas as possíveis origens deste ritual, sua inserção e conservação, e como este ritual é realizado contemporaneamente nas comunidades judaicas da Amazônia.

Quanto aos festejos de Mimuna em Israel, esta pesquisa ressalta a inserção da Mimuna e o estranhamento que o ritual causou inicialmente na sociedade israelense. Descrevendo ainda, a transformação da Mimuna, de uma prática restrita aos judeus marroquinos ou judeus orientais, a uma festividade que agrega cada vez mais novos setores da sociedade israelense.

O elemento seguinte analisado na pesquisa foi a mística judaica, um aspecto muito presente tanto no judaísmo marroquino conservado em Israel, como também, nas comunidades de Belém e Manaus.

Além de uma análise sobre o universo simbólico de supertições e crenças conservadas nestas comunidades, muitas delas oriundas do contato com as populações berberes do Marrocos, por uma questão metodológica as análises sobre o misticismo no judaísmo marroquino foram concentradas em análises sobre os rituais de sacrifício das Kaparot às vésperas de Yom Kipur.

Buscando resgatar as origens deste ritual, a sua significância dentro do judaísmo marroquino e sefaradita, como estes rituais eram realizados no inicio da imigração judaico-marroquina para a Amazônia, e de que maneira este ritual continua se mantendo, através de grandes esforços empreendidos pela comunidade judaica de Belém para continuar realizando os sacrifícios, ou na forma moderna da comunidade de Manaus de substituir definitivamente os sacrifícios pela doação de donativos, mas continuar mantendo o ritual, já que é tão significativo para este segmento do judaísmo.

Ou ainda, como a palavra Kaparah é empregada no hebraico contemporâneo falado em Israel, e como a utilização deste termo também é característica da etnicidade dos judeus marroquinos e orientais na sociedade Israelense.

Prosseguindo pelo caminho indicado pela mística judaica, o projeto “a mão e a luva” também comparou o habito de culto aos tzadickim tanto dentre os judeus marroquinos em Israel como também na Amazônia.

Em Israel foram visitadas as hilulot do Rabino Baba Sali na cidade de Netivot, que é quase desconhecido das comunidades judaico-marroquinas da Amazônia, mas representa fortemente em Israel a devoção deste setor do judaísmo a estas personalidades místicas.

A hilulah em homenagem a Ribi Shimon Bar-yochai, que é muito significativa para os judeus da Amazônia, em Israel não ressalta em suas comemorações elementos do judaísmo marroquino. A hilulah em homenagem ao pai da mística judaica tornou-se um evento de proporções gigantescas e evidencia muito mais elementos do judaísmo ortodoxo ashkenzita do que do judaísmo sefaradita-marroquino, como observado na hilulah de Baba Sali em Israel, ou como ocorre nas hilulot em homengem a ribi-shimon nas comunidades da Amazônia.

Na cidade de Manaus além da analise da devoção aos tzadickim também foi analisado o curioso caso do rabino Shalom Muyal, que foi enterrado fora dos limites do cemitério judaico, e sua sepultura tornou-se local de veneração tanto para judeus, como para pessoas da população local, que também peregrinam ao túmulo do rabino e deixam pedras e velas em forma de pedido ou de agradecimento por graças alcançadas.

Esta pesquisa analisou como ocorre o culto do rabino Muyal por parte da comunidade judaica de Manaus, e como o rabino e cultuado pelos não-judeus, como estes adquiriram a crença no rabino, quais os pedidos e maneiras que este rabino é reverenciado por seus devotos amazonenses.

O quarto elemento analisado nesta pesquisa foi a Haquitia como componente linguístico, e demarcador da identidade dos judeus da Amazônia. Além das origens desta língua judaica tão antiga e peculiar, esta pesquisa também procurou esclarecer como a Haquitia se estabeleceu e se conservou na Amazônia após dois séculos de imigração. Ressaltando ainda o paulatino desaparecimento da Haquitia, mas o seu considerável peso na estruturação da identidade étnica das comunidades judaicas da Amazônia.

O último elemento analisado nesta pesquisa foram as cerimônias de Henna. A utilização da tintura de henna como medicamento e como cosmético é um costume muito difundo em várias civilizações, esta pesquisa analisou a utilização da henna nas cerimônias pré-nupciais dos judeus no Marrocos, as representações místicas e simbólicas deste ritual. Abordando também como o ritual da henna foi levado para Israel com a grande imigração dos judeus marroquinos em 1950, e como é realizado na sociedade israelense.

A cerimônia da henna nas comunidades dos judeus marroquinos da Amazônia era uma tradição que havia sido esquecida, esta pesquisa retratou como este costume aos poucos está sendo retomado nas comunidades de Belém e Manaus devido ao contato com outros grupos de judeus marroquinos de Israel.

Para finalizar este longo percurso de pesquisa pelos caminhos da etnicidade dos judeus marroquinos, gostaria de esclarecer que a intenção principal de toda esta empreitada não foi somente a descrição de determinados aspectos do judaísmo marroquino em Israel e na Amazônia, a real intenção com este trabalho de pesquisa foi alcançar a compreensão de como as identidades destes grupos judaicos são articuladas a partir destes elementos, compreender como estes elementos dão cores e formas a etnicidade deste grupo judaico tão peculiar dentro da pluralidade do judaísmo.

Espero sinceramente, que este estudo que tentou compreender a construção da identidade étnica dos judeus da Amazônia a partir da analise de seus elementos emblemáticos, e de um paralelo com as identidades dos judeus marroquinos em Israel, tal compara-se uma mão e uma luva… possa servir para as gerações futuras como um registro minucioso de como se conservou o judaísmo marroquino no início do século XXI, após duzentos anos de inserção dos judeus marroquino-sefaraditas nas terras da Amazônia.

Parabéns a toda a coletividade israelita da Amazônia, por esta data tão importante. Sem a colaboração fraternal de todos, este trabalho de pesquisa jamais teria sido realizado.